21/12/2006

Ainda os tamancos...

Esta semana li uma frase de Cecília Meireles (1901-1964), contida em uma das suas inúmeras crônicas de educação, que muito me sensibilizou. A autora, com seu jeito sincero de dizer as coisas certas nas horas incertas, fala-nos sobre a faculdade humana de conciliar extremos.

A mim, a frase parece por demais oportuna, visto que o momento é de conciliação e não de posições extremistas - apesar da existência de tantos "ismos" e "istas" circulando mundo afora...

Penso que, se cada um de nós tentar romper as fronteiras que separam gregos de troianos, o mundo seria mais colorido. Porém, estamos sempre tão preocupados em defender as próprias convicções, interesses... que esquecemos que, no outro lado da ponte, há também outras "verdades".

Bem... como é chegado o fim do ano, penso que é hora de começar a arrumar as prateleiras e a geladeira, os cômodos do quarto, a mesa, as cadeiras... e cingir os velhos retalhos daquela colcha de chenile. Rever as coisas esquecidas e os papéis empoeirados no fundo do baú. Enfim, é chegada a festa das gavetas! Abrir as janelas e deixar o sol arejar a casa.

É chegada a hora de calçar "novos tamancos". A vida segue seu fluxo e necessitamos de mais sapatos para calçar os acertos e desacertos, enganos e desenganos do novo ano. Para que possamos, sabiamente, compreender as coisas boas e más que se confrontam no cotidiano, sem, no entanto, perder de vista o ânimo, a serenidade, a tolerância, o bom humor...

Façamos como Cecília, busquemos a unidade do mundo!


"Vivo conciliando os contrários. Criando a unidade do mundo. Como os filósofos..."

(Cecília Meireles).


19/12/2006

Novos tamancos

É chegado o fim do ano.
Mais um ano...
Mais um ano...
Um ano para esquecer
Um ano para acalentar
Um ano para redescobrir.


O que seria de nós se não houvesse os relógios?
E os ponteiros e os calendários e os seus óbitos?

[...] se não existissem demarcações?
Nos olhos, nas luzes, nas sombras, nas combustões?

O que faríamos, nós, com a existência de um grau zero?
Uniríamos começo, meio, fim...
e destilaríamos nos caldeirões os seus mistérios?

[...] se deixássemos ser a chuva?
E sermos leveza, transparência, flor, candura...
e a tudo transformar?


É chegado o fim do ano
Embora eu já tenha comprado meus novos tamancos...
Não tenho nenhuma pressa em calçá-los!


19/06/2006

Fragmento poético



"Elas já não me pertencem, entrego-as a ti. Que saibas zelar por elas, regando-as para mim. Todas elas são tuas. Delas faças proveito. Todas elas nuas, para o teu deleito. Só peço que as tenha, com demasiado cuidado. As palavras são pastos floridos no espaço". (in: Retrato de Helena, 2005, p. 63).





Renúncia


Cortarei as asas das borboletas
Para que fiquem imóveis.
Para que não pousem levianas,
Fazendo ciranda, em alheios móveis.

Cortarei as asas das borboletas
Para que não percam a cor e a beleza.
Para que não busquem néctar nas flores;
Para que não vivam por vãos amores.

Cortarei as asas das borboletas
Para que definhem até a morte.
Para que mudem o seu destino e a sua sorte.

Cortarei as asas das borboletas
Para que morram sentindo as dores
Pela ausência que jaz, o néctar das flores.



(Renúncia, in: Retrato de Helena, 2005, p. 70)


Jardim em flor




A poucas pessoas me mostro,
realmente, como sou.
A outras, apenas disfarço a minha dor;
Porque não me vejo em todo olhar;
Há espelhos capazes de me revelar,
outros, só ofuscam o meu pesar.


Sou naturalmente solitária;
Mas, poucos sabem da minha solidão.
Sou exageradamente conturbada;
Quando acordada, escuto vozes
na escuridão.


Para espantar meu vazio:
Desenho, rio, finjo;
Faço da minha dor beleza;
Nem sempre me sento à mesa,
porque nela não estou.


Mas se você pretende me encontrar,
examine-me no seu olhar:
Lá, eu estou!
Com borboletas a enfeitar,
um jardim em flor;
Cujo endereço,
Não posso revelar.




(In: Retrato de Helena, 2005, p. 29)

Arte: Mulher ao espelho (Pablo Picasso)


Carta ao amigo



Caro amigo[1],
minhas saudações.


Hoje tenho tomado consciência que não tenho, apenas, alguns poucos anos de vida, mas, provavelmente, quatro séculos de existência.
Muitos pensamentos têm-me, insistentemente, afligido o espírito. Alguns passam a noite a rodear-me, envolvendo-me e requerem, de mim, explicações às coisas que talvez estejam além da minha compreensão. A verdade é que tenho buscado nos textos literários, a priori nos poéticos, possíveis esclarecimentos para as minhas angústias.
Tenho refletido muito sobre o homem e o seu ideal de felicidade, porque, assim, poderei compreender a mim mesma e aos valores que, historicamente, têm me acompanhado. Penso que muitas das minhas aflições decorrem dos ideais dos novos homens; exigindo de mim uma certa racionalidade para examinar os meus próprios sentimentos. A bem da verdade, é que tenho buscado esse entendimento a partir da reflexão do pensamento Iluminista que, por sua vez, tivera suas bases filosóficas importadas da Renascença:
– Como posso, meu senhor, confiar-te os mais sinceros sentimentos, sem ultrajar a nossa sã e fecunda relação? Tenho por ti uma admiração quase que divinal, porque não dizer paternal! Entretanto, é verossímil que os meus olhos já não te vêem com o mesmo olhar. A tua imagem, antes tão fria e distante e, terrivelmente, vertical, tem-se modificado, gradativamente, à luz da inteligência humana.
Contudo, meu amigo, em meio a tantos pensamentos, livros e enciclopédias, sinto-me, ainda, extremamente bucólica. Um forte sentimento idílico tem-me contagiado, remetendo-me a um passado distante, cujos homens podiam se deleitar à natureza. A bem da razão, resigno-me a imaginar, no plano da fantasia, o homem em seu estado natural, não corrompido pelos valores da civilidade. E, nesse plano, posso visualizá-lo sem que minha alma se corrompa pela artificialidade da vida mundana.
O fato, meu senhor, é que não pertenço a este tempo, mas posso-me retroceder para que minh’alma se una a tua. No plano da fantasia, tudo posso, tudo me é permitido sonhar. Posso ver-te por entre as nuvens dos meus pensamentos, posso sentir a tua presença, amar-te, adorar-te. Mas a cruel realidade, com todas as suas frívolas engenharias, afasta-nos. A contar pelo tic-tac do relógio que, insistentemente, alerta-nos a hora, pelos rigores dos ofícios, pelas exigências comuns à vida moderna.
É, meu querido, uma gama de valores diplomáticos permeia a nossa cortês relação, restringindo-nos a qualquer possibilidade de realização afetiva. Falta-nos a poesia, falta-nos o olhar sensível, não mascarado pela racionalidade científica, que submete o poeta a refugiar-se aos campos sob a condição de tornar o Real em Belo.
Novamente confesso-te que, embora meu espírito tenha nascido em meados dos “Setecentos”, a esse tempo não pertenço! Caso eu o pertencesse, não me acompanharia, hoje, tal nostalgia. Meus sentimentos se elevariam comovidos com a sensatez das Suas ilustrações poéticas; e o meu espírito não se afligiria mediante a contida emotividade de Suas liras musicais.
Não desejo mais ser a Sua Marília, não quero-me imortalizada por Seus versos, a Sua expressão de afeto tem-me sido dissimulada e oportunista. Hoje, não desejo ser a musa de Seus poemas galantes e perfeitos, pois sei que são vãs, são-lhes refúgios para as Suas copiosas e dignas responsabilidades civis.
Quero-lhe com todos os artifícios e vícios comuns a nossa civilidade; com todas as angustias d’alma. Quero-lhe instintivo, sonoro e difuso; insano, inquieto e reflexivo. Não almejo-lhe ponderado, irremediavelmente, debelado e ilustrado. Todavia, não desejo-lhe animal, rude aos modos, e ausente de significância.
Quero-lhe Senhor dos Seus pastos, entretanto, entregue, intensamente em meus braços.


Carinhosamente,
Helena.



[1] Carta da personagem Helena ao amigo Seminarista. In: Retrato de Helena (FERNANDES, 2005, p. 57-59).

Encontro nas nuvens


Até quando?
Até quando!?

Até quando o sertão virar mar,
e o mar virar sertão.
Até quando o seu olhar
deixar de ser pra mim uma tentação.

Até quando o tempo parar
e o vento nada me levar.
Como fez à moça, o vilão violento;
Deixando-a sem seu violão,
e entregue ao lamento.

Até quando o sol e a lua se encontrar,
E não houver nenhuma música
pra acompanhar.
Talvez até lá, talvez antes,
Quando for ímpar,
quando for fecundante.

Até quando ele, por fim, encontrá-la nas nuvens!




[1] Versos inspirados no poema lírico “O Violão e o Vilão” de Cecília Meireles (In: Ou isto ou aquilo: 1964) . O poema fora musicado por Marcus Vinícius e encontra-se disponível para audição na página do autor no myspace sob o título de "A viola da vida".

Para ouvir:

http://profile.myspace.com/index.cfm?fuseaction=user.viewprofile&friendid=419565768



"O sonhador, em seu devaneio, não consegue sonhar diante de um espelho que não seja profundo."

(Gaston Bachelard)